O génio do apelido é virtude brasileira, diria quase carioca. Não conheço, em outros povos, uma tal espontaneidade na caracterização de tipos através de apelidos. Aqui no Rio, então, se o sujeito não tiver sido muito bem-feitinho, a régua e compasso, dificilmente o seu defeito ou modo peculiar de ser passará despercebido ao olho do carioca. Aliás, também não adianta muita perfeição, haja vista o excesso de linha daquele indivíduo sempre ultra-engomado, que lhe valeu para sempre o apelido de Carretel.
Há entre nós homens e mulheres com apelidos absolutamente notáveis. Não vou, é claro, revelar a identidade de seus portadores, muitos dos quais não conheço, porque em geral apelidos desse género obedecem a uma crítica um tanto cruel, a uma caricatura em palavras de defeitos ou peculiaridades. Chamar gente de nariz chato de Nariz de vidraça pode ser muito engraçado. mas não para o possuidor do dito, seus parentes e amigos mais íntimos. Aquele rapaz, por exemplo, que cresceu demais e ficou lá em cima, com um rosto glabro e infantil, é para todos os efeitos Menino desce do Muro. Apelido cruel, convenhamos. Aliás, para caracterizar homens altos com um certo ar oligofrênico, há outros apelidos bastante bons: Espanador da Lua, Jóquei de Elefante, Água-Furtada. Sujeito alto, de pescoço comprido, já se sabe: é Garrafa. Há um magro, moreno e triste, conhecido meu, que tem o apelido de Pavio. um outro, esquelético e muito louro, de Batata Palha. Este provavelmente não gostaria de ser identificado.
Minha amiga Danusa Leão não liga a mínima (até gosta!) que a chamem Girafinha, devido ao seu lindo pescocinho espichado. E está certo, o apelido é terno. Mas coisa diferente é ser apelidado Bagaço de Cana ou Unha Encravada, como aconteceu com dois homens públicos, notórios no Brasil pela sua feiúra. Ou 1001, pela falta de dois dentes na frente, ou Ovos Nevados, por causa de manchas brancas na pele. Ou Azeitona Triste, devido a uma fisionomia verdoenga, coroada por uma melancólica careca; ou Puxa a Válvula, violento apelido para um homem sujo e de mau hálito, de quem eu fujo como da peste.
Gente chata, essa tem apelidos que se vão tornando clássicos: Bolha, Pereba, Calo, Ferrinho de Dentista, Pingo D'Água, Sapato Apertado, Valha-me Deus. Pode-se apontá-los na via pública; como também àquela vulcânica moça a quem apelidaram Estragalares e aquela grande fã de escritores e jornalistas, que ficou conhecida como Gruta da Imprensa; e mais aquela jovem leviana que, por muito pegada, tomou a pecha de Maçaneta; e ainda aquelas outras duas bem vulgares, vampes, que passaram a ser Minhoca de Lajedo e Que Modos São Esses.
Houve um tempo em que havia aqui no Rio três lindas Elzas, excelentes moças, grandes amigas de nosso grupo. A uma, por excesso de "bondade", o carica Lúcio rangel apelidou de Elza Pudim Carnal; e o cronista Rubem Braga, que é de Cachoeiro de Itapemirim, mas também um bom carioca, chamou às outras duas Elza Quisera Eu e Elza Simpatia É Quase Amor. A caracterização, como se vê, nada fica a dever à biotipologia.
Chamar moça gostosa, de andar trançado, de Tico.Tico no Fubá não é nada mau. Como também me parece um achado o apelido de Festa na Cumeeira, dado aos rapazes de Copacabana, da geração coca-cola, pelo topete que usam na cabeleira. A propósito de penteados, há outros bons bons como Rabo de Peixe, para negrinhas de cabelos esticados a ferro, ou Rompe-Fronha, para quem tem cabelo cortado rente e espetado.
Gente pernóstica tem merecido, também, apelidos mais justos, como aquele crioulo de linguagem rebuscadíssima, a quem chamaram Noite Ilustrada; ou aquele branco do mesmo teor, que ficou conhecido como Bolas de Ouro.
Ninguém escapa nesta desvairada metrópole. Capenga pode eventualmente ser chamado de Pneu Furado ou Pé de no Visgo. Gente de pele escalavrada, Cocada Preta; mentirosos, Palavra de Honra; pessoas com crânios e orelhas de abano, Feijoada Completa; homens corpulentos e balofos, Bolo Fofo; homossexuais muito altos, Jaca (porque é fruta grande). Sujeitos ricos e pequenininhos, Banana de Ouro; carecas totais, Ponto de Referência. Elegantes desses que usam berloques de ouro e relógios-pulseira, alfinete ou pregador de gravata e anel no mindinho, Árvore de Natal. Tipos albinos, ou muito ruivos, Tijolo ou Pinga-Fogo.
Há um amigo meu a quem apelidaram Mal Necessário. Um bom sujeito. Há um outro, que um dia, nu, foi-se olhar no espelho sobre uma penteadeira que tinha uma gaveta aberta e perdeu o equilíbrio (contam os seus amigos que o berro foi tremendo!), a quem chamam Gaveta.
Como se vê, tudo é pretexto para um bom apelido.
em Para uma menina com uma flor, de Vinicius de Moraes
MINIDICIONÁRIO PORTUGUÊS DO BRASIL/PORTUGUÊS DE PORTUGAL:
.CARRETEL=CILINDRO ONDE SE ENROLAM FIOS OU LINHA DE COSTURA
.GLABRO=SEM BARBA OU PELOS
.OLIGOFRÊNICO=Q.I. BAIXO, IDIOTA OU IMBECIL
.PEREBA=LESÃO CUTÂNEA
.PECHA=FALHA, DEFEITO
.FUBÁ=FARINHA DE ARROZ/MILHO
.LAJEDO=CIDADE BRASILEIRA
.CUMEEIRA=PILASTRA DA PARTE MAIS ALTA DO TELHADO
.PERNÓSTICA=PEDANTE, PETULANTE OU PRETENSIOSA
.CAPENGA=PERNETA
publicada por CHIQUITA #
13:30