NÃO TE METAS NA VIDA ALHEIA SE NÃO QUERES LÁ FICAR
Meu caro Vardebedian:
Hoje fiquei mais que triste ao verificar, no correio da manhã, que a minha carta de 16 de Setembro, que continha o meu vigésimo segundo lance (cavalo para a quarta casa do rei), tinha sido devolvida sem ser aberta, devido a um pequeno engano no endereço-precisamente a omissão do seu nome e morada (quão freudiano se pode ser?), adicionada ao esquecimento de colocar o selo. Não é segredo que tenho andado desconcertado, devido a um equívoco no mercado de valores, e, apesar de o mencionado dia 16 de Setembro ter sido o culminar de uma longa queda em espiral que fez sair, de uma vez para sempre, a Companhia Antimatéria Amalgamada da tabela de cotações da Bolsa, reduzindo o meu corrector a esparregado, acho que isto não é desculpa para a minha negligência e inépcia monumental. Foi uma argolada. Perdoe-me. Que você não tenha notado que faltava uma carta, eis o que indica uma certa desorientação da sua parte, que eu atribuo a excesso de zelo, mas Deus sabe que todos erramos. É a vida-e o xadrez.
Bem, esclarecido o engano, segue-se uma simples rectificação. Se tiver a gentileza de transferir o meu cavalo para a quarta casa do meu rei, penso que poderemos prosseguir o nosso joguinho de um modo mais preciso. O anúncio de xeque-mate que me faz no correio desta manhã parece-me, francamente, um falso alarme e, se reexaminar as posições à luz da descoberta de hoje, descobrirá que é o seu rei que está perto do mate, exposto e indefeso, qual alvo imóvel para os meus bispos predadores. Irónicas as vicissitudes da guerra em miniatura! O destino, sob a capa de uma secção de correspondência extraviada, ergue-se omnipotente e-voilà!-asorte muda. Uma vez mais, peço-lhe que aceite as minhas sinceras desculpas por este infeliz descuido e aguardo, com ansiedade, a sua próxima jogada.
Junto segue o meu quadragésimo quinto lance: o meu cavalo toma a sua dama.
Atenciosamente,
Gossage
(...)
Gossage:
que curiosa que era a sua última carta! Bem-intencionada, concisa, contendo todos os elementos que se aparentam ao que, em certos grupos referenciados, passa por ser um efeito comunicativo, já deleniado através do que Jean-Paul Sartre costuma referir como o «nada». É-se imediatamente confrontado com uma profunda sensação de desespero e faz vivamente lembrar os diários deixados por fatídicos exploradores perdidos no Pólo ou as cartas dos soldados alemães em Estalinegrado. É fascinante como os sentidos se desintegram quando se confrontam com uma negra e ocasional realidade e fogem desordenadamente, edificando miragens e construindo um precário amortecedor contra o assalto furioso de toda uma realidade demasiado terrífica!
Tal como estão as coisas, meu amigo, tive de passar a melhor parte da semana decifrando o miasma de lunáticos alíbis que é a sua correspondência, num esforço para ajustar as coisas, de modo a que o nosso jogo possa simplesmente acabar de uma vez por todas. A sua dama foi-se. Despeça-se dela. As duas torres, também. Esqueça-se de um dos seus bispostambém,porque eu tomei-o. O outro está colocado de um modo tão impotentemente afastado da acção principal do jogo que o melhor é não contar com ele, ou ainda tem um desgosto.
No que respeita ao cavalo que você rotundamente perdeu mas se recusa a admitir, coloquei-o na única posição concebível, assim lhe concedendo o mais incrível feixe de heterodoxias desde que os Persas desencantaram esta pequena diversão, há já uma data de anos. Está na sétima casa do meu bispo e, se conseguir manter as suas descendentes faculdades o tempo suficiente para avaliar as posições no tabuleiro, dará conta que é essa mesma peça tão ambicionada que agora bloqueia a única possível fuga do seu rei à minha sufocante tenaz. Quão exemplar é o facto da sua voraz maquinação se ter transformado numa vantagem para mim! O cavalo, no seu vil regresso ao jogo, torpedeia-lhe o seu próprio final!
O meu lance é a dama para a quinta casa do cavalo e prevejo mate num único lance.
Cordialmente,
Vardebedian
(...)
Gossage:
Bispo para a quinta casa da dama. Xeque-mate.
Lamento que o jogo tenha sido demasiado forte para si, mas, se lhe serve de consolação, vários mestres de xadrez locais, depois de observarem a minha técnica, desistiram. Se desejar uma desforra, sugiro-lhe que tentemos o scrabble, um jogo por que me interesso há relativamente pouco e onde penso que me não será tão fácil deixá-lo para trás.
Vardebedian
Vardebedian
Torre para a oitava casa do cavalo. Xeque-mate.
Em vez de o atormentar com os ulteriores pormenores do meu mate, como que você é, basicamente, um homem honesto (um dia, uma qualquer terapia há-de confirmá-lo), aceito, de bom grado, o convite para o scrabble. Pegue no tabuleiro. Como jogou com as brancas no xadrez, gozando deste modo da vantagem de ser o primeiro a abrir (se eu tivesse sabido das suas limitações ter-lhe-ia dado um avanço maior), serei eu o primeiro a jogar. As sete letras que acabei de virar são O, A, E, J, N, R e Z-uma desconcertante confusão que garante, mesmo ao mais desconfiado, a integridade da minha jogada. Felizmente, porém, um extenso vocabulário, adicionado a uma tendência para o esotérico, tornou possível que eu estabelecesse uma ordem etimológica no que, para alguém menos letrado, pareceria um absurdo. A minha primeira palavra é «ZANJERO». Olhe bem para ela. Agora coloque-a horizontalmente com o E no quadrado do centro. Conte cuidadosamente, não esquecendo a pontuação dobrada por ser uma jogada de abertura e o bónus de cinquenta pontos pelo uso de todas as sete letras. O marcador está agora em 116-0.
É você a jogar.
Gossage
publicada por CHIQUITA #
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